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Os tempos das imagens astrais

Autor: Murilo Custodio dos Passos

Tutor do Programa: Prof. Tiago Kramer de Oliveira

Orientadora: Profa. Aline Dias da Silveira

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É possível interpretar a passagem do tempo a partir de imagens de morte e renascimento? Que pistas as imagens astrais podem nos dar para encontrarmos essa resposta? Este material foi concebido para que você caminhe por uma narrativa que responda a essas perguntas a partir da análise de imagens do século XV (1401-1500) que apresentam figuras astrais. 

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o toque do olhar

Veja as imagens ao lado. São miniaturas presentes em um manuscrito chamado Descrição da Esfera Celeste e dos Planetas. É possível que seu ano de produção seja 1491. É muito comum que o período em que essas imagens foram produzidas seja chamado de Renascimento.

 

No entanto, será que realmente podemos falar de um renascimento? O que havia morrido? É possível usar imagens de morte e renascimento para interpretar a passagem do tempo? Para responder essas perguntas, tomamos como ponto de partida essas imagens dos espíritos astrais.

No entanto, as imagens não falam por si mesmas: precisamos elaborar perguntas e procurar as respostas em diversas fontes. Quanto mais soubermos sobre o período e o espaço onde as imagens surgiram, mais perguntas surgirão, exigindo respostas mais instigantes e desafiadoras.

 

Para elaborar perguntas mais precisas e tentar encontrar as respostas mais satisfatórias é necessário percorrer um caminho que passa pela leitura de bibliografia especializada e pela comparação entre documentos da época. Que tal fazermos esse trajeto juntos? Vamos lá?

Enfim, existem muitas possibilidades. Nesse percurso, nossos principais documentos serão imagens. É importante lembrar, ao longo do caminho, que os documentos não são neutros, eles exprimem o ponto de vista específico de quem os produziu.

imagens e alegorias

O que é uma imagem?
Qual a relação entre a imagem alegórica e a passagem do tempo?
Qual a importância da alegoria para o pensamento medieval?
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documento

O que é um documento? O documento histórico é aquilo que as historiadoras e os historiadores escolhem para servir como fonte de informações para a escrita de uma narrativa sobre o passado. Qualquer produto da atividade humana pode ser um documento histórico desde que sejam aplicadas metodologias adequadas para a sua interpretação.

São possíveis documentos: registros e relatórios oficiais, leis, jornais e revistas, quadrinhos, livros, diários, cadernos, panfletos, utensílios, prédios, ruínas, imagens, paisagens, produtos audiovisuais, gravações de áudio, músicas, tradições orais, rituais, festas populares, idiomas.

Descrição da Esfera Celeste e dos Planetas

Esse tratado é o documento que nos serve de ponto de partida para a pesquisa. O manuscrito apresenta os brasões das famílias Sforza e d’Este e encontra-se atualmente na Biblioteca Estense.

É provável que tenha sido parte do dote de Anna Sforza (1476-1497) na ocasião de seu casamento em 1491 com Afonso I d’Este, duque de Ferrara, Modena e Régio da Emília. Ela, por sua vez, era filha de Galeazzo Maria, duque de Milão.

O manuscrito apresenta uma descrição da esfera celeste, do movimento dos astros e sua influência na vida humana. O documento consiste de 15 miniaturas de página inteira, retratando os planetas, as constelações do zodíaco e os Filhos dos Planetas, além de diagramas representando o movimento dos astros pela esfera celeste. As miniaturas estão acompanhadas de títulos e versos em italiano.

O estilo das imagens remete às oficinas da região lombardina, no norte da península itálica. É possível que Cristoforo de Predis (1440 a 1486) seja seu autor.

Essas imagens frequentemente aparecem incompletas em livros didáticos. Buscando representar as relações sociais na Idade Média, apresentam os Filhos dos Planetas como profissões separadas dos seus astros regentes, ignorando o caráter alegórico dessas imagens

Além das quatro miniaturas da Descrição da Esfera Celeste e dos Planetas, encontraremos nesse percurso uma pintura sobre madeira, uma miniatura presente em um livro de horas e quatro trionfi, sendo que um é parte do baralho Visconti di Modrone (c. 1428-1447), dois fazem parte do baralho Visconti-Sforza (c. 1450-1480) e um faz parte do baralho da coleção de François Roger de Gaignières (c. 1475-1500).

os Filhos dos Planetas

Segundo a historiadora Breanne Herrera, esse é um dos primeiros manuscritos a apresentar a iconografia dos Filhos dos Planetas de que se tem notícia. Apesar de haver imagens dos planetas a partir do século XII, essa iconografia especificamente teria surgido no século XIV, quando os artistas passaram a pintar imagens a partir dos textos de Abu Ma’shar.


Os estudos do historiador Geoffrey Shamos estão em concordância com isso. De acordo com ele, é provável que a composição dos Filhos dos Planetas tenha se desenvolvido na poesia e arte gráfica germânica no fim do século XIV e início do século XV. O documento que teria servido de base para a Descrição da Esfera Celeste e dos Planetas seria um livro xilogravado publicado em Basileia, na atual Suíça, num ano próximo de 1430.


As pesquisas da historiadora Aline Dias da Silveira evidenciam que, no período em questão, os astros eram considerados espíritos ou virtudes divinas que poderiam ser acessados por meio de preces, invocações e ritos mágicos. Isso possibilitava a produção de talismãs protetores e outras ações sobre o mundo natural.


Embora diversos cristãos tenham sido entusiastas da astrologia, muitos reis tenham mantido astrólogos como conselheiros, e o historiador da arte Aby Warburg tenha atestado a existência de profecias astrológicas na documentação do período, a adivinhação por meio da astrologia nem sempre era bem aceita, tendo sido criticada por muitos autores cristãos mais rígidos na defesa do livre arbítrio.
 

Lua

a Lua

A imagem da Lua com sua tocha remete a diversas deusas da Antiguidade, como Hécate, Ártemis/Diana e Selene/Luna. Junto da deusa astral, encontra-se a constelação de Câncer, que é regida por ela. Durante a Idade Média, a figura de Maria ressignificou diversos elementos das deusas da lua da Antiguidade, havendo inclusive comparações explícitas entre elas.

 

Em ambas as miniaturas, encontram-se seus filhos. Na primeira, as embarcações navegam entre as ondas e, no fundo, duas árvores se destacam da paisagem. Na segunda miniatura, pessoas se divertem com jogos, um cão os acompanha e um viajante descansa de sua caminhada. Em segundo plano, um burro de carga leva um saco em direção ao moinho d’água, enquanto seu lombo é castigado pelo chicote de um humano.

 

O historiador Rivair Macedo pesquisou a relação entre o riso ritual, os cultos pagãos e a moral cristã. Ele constatou que a figura do asno era associada à fecundidade por sua sexualidade exacerbada e, por esse motivo, era vista como tola e risível. Na imagem, o caráter sexual do asno é contido pela cena de castigo físico.

 

Além disso, um homem pratica falcoaria e, mais ao fundo, dois homens pescam com uma rede. Abaixo da primeira miniatura, o poema trata de sua esfera de influência:

A lua favorece muito a navegação,
a pesca, a falcoaria e a caça
A todos os seus filhos abre a porta
E também ao divertimento que satisfaz aos outros
(PREDIS, C. Descrição da Esfera Celeste e dos Planetas, 12v).

Por ser regente dos movimentos das marés e de todas as águas do mundo, a Lua favorece atividades como a navegação, a pesca e a moagem. A falcoaria e, especialmente, a caça remetem aos atributos da caçadora Ártemis/Diana.
 

Sendo o astro mais próximo da humanidade, ela é o canal de acesso às esferas superiores. Também abria as portas aos jogos e ao divertimento, dando acesso aos desregramentos da vida. Os temas da água e do divertimento desregrado presentes na esfera da Lua são sintetizados na imagem da Nau dos Loucos que emerge das águas profundas do imaginário da época.

Lua e seus Filhos de Cristóforo de Predis. Descrição da Esfera Celeste e dos Planetas. 12v.
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a Nau dos loucos

Observe as imagens ao lado. A primeira é a tela denominada Nau dos Loucos (c. 1490-1500). A segunda é o trionfo da Esperança presente no baralho Visconti di Modrone (c. 1428-1447). A terceira imagem é a carta do Louco do baralho Visconti-Sforza (c. 1450-1480).

Pintada por Hieronymus Bosch, a embarcação surgia das águas profundas do imaginário e sintetizava elementos da esfera de influência lunar. Nela, diversos personagens entregam-se ao divertimento, aos prazeres da vida terrena e à loucura, rompendo com a seriedade e a ordem do cotidiano.

De acordo com o filósofo Michel Foucault, a Nau dos Loucos nasce da tradicional aliança que se estabelecia entre a água e a loucura. A imagem da embarcação remete a uma busca pela razão por parte da humanidade insana.

O mastro dessa barca é a árvore do conhecimento do bem e do mal, onde se observa uma figura parcialmente oculta. A partir da árvore, uma bandeira serpenteia, ostentando a imagem da lua crescente, que era associada aos muçulmanos. A experiência cósmica da loucura era tida como um saber fascinante e teve um papel central na iconografia do período.

 

Pelas correntes marítimas incertas da loucura, a Lua conduzia a humanidade, abrindo as portas ao divertimento desregrado. A medicina humoral do período identificava um excesso de fleuma na cabeça como a causa da insanidade.

A figura da Esperança, por sua vez, é uma mulher que olha em direção aos céus e posiciona suas mãos em oração. Em sua mão, há uma corda amarrada, prendendo-a a uma âncora. A figura da mulher repousa sobre um corpo humano de maneira triunfante. Essa imagem remete ao discurso bíblico presente na Epístola aos Hebreus: 

“A esperança, com efeito, é para nós qual âncora da alma, segura e firme, penetrando para além do véu, onde Jesus entrou por nós, como precursor, feito sumo sacerdote para a eternidade, segundo a ordem de Melquisedec.”

(Bíblia de Jerusalém. Epístola aos Hebreus 6:19)

A produção do baralho Visconti di Modrone foi encomendada ao pintor Bonifácio Bembo, possivelmente por Filippo Maria Visconti, duque de Milão. As cartas da Esperança, da Fé e da Caridade presentes nesse baralho constituíam o grupo das virtudes teologais e não fazem parte dos arcanos maiores que se consolidaram como parte dos baralhos de tarô posteriores.

A presença dessas cartas no baralho encomendado poderia indicar uma maior proximidade com os ideais religiosos. A imagem da âncora como esperança em Deus é a figura oposta e complementar da Nau dos Loucos, presente na segunda imagem.

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Na terceira imagem, é possível ver a carta do Louco presente no baralho Visconti-Sforza. Seu bastão guarda semelhança com a bengala de Saturno, sendo que ambos vestem farrapos e tem as pernas enfaixadas. As imagens de Saturno e do Louco personificam a inadequação social.

De acordo com a historiadora Helen Farley, as sete penas em sua cabeça poderiam remeter aos sete pecados capitais, e sua figura lembra algumas imagens em que o Diabo era retratado como um selvagem vestindo uma saia esfarrapada.

Na verdade, o Louco não era um dos trionfi, mas sim uma “carta selvagem” sem posição definida. Assim como ele não se sujeitava às regras da vida social, sua carta também não estava sujeita às regras do jogo. Portanto, havia uma semelhança entre seu papel no jogo e o significado de sua figura.

A circulação dos loucos se restringia aos espaços de passagem, como o mar e as estradas entre as cidades. A imposição de castigos corporais, a humilhação pública e a expulsão dos Loucos das cidades atuavam como importantes ritos de purificação social.

Foucault coloca as imagens da Morte e da Loucura em uma mesma cronologia. Ao fim do século XV, o riso do Louco passa a anteceder o riso da Morte, desarmando o macabro por meio de um presságio. A loucura e seu aspecto cômico aparecem como solução para o medo da morte.

Trata-se de uma nova forma de dar sentido ao mesmo tema do vazio da existência: outrora sentido como exterior e final, agora é interno e contínuo. Nas palavras de Foucault (1978, p. 21) “A cabeça que virará crânio, já está vazia. A loucura é o já-está-aí da morte”.

Nau dos Loucos
Saturno

Saturno

A imagem de Saturno aparece entre as figuras de Capricórnio e Aquário, constelações que são regidas por ele. Com a foice em mãos, sua figura remete ao antigo deus do tempo e da semeadura: Cronos/Saturno, aquele que havia castrado o seu pai e devorava seus filhos para evitar a própria castração.

O filósofo Walter Benjamin defende que durante a Idade Média que a imagem de Saturno com a ceifa ou gadanha se torna uma alegoria para a Morte devido à semelhança de seus atributos.

Em ambas as miniaturas da Descrição da Esfera Celeste e dos Planetas encontram-se seus filhos. Na primeira, há ladrões, trapaceiros, duelos e um cão. Walter Benjamin apresenta as duas formas como o cão era associado à melancolia no período em questão. Por um lado, acreditava-se que o baço tinha papel dominante no comportamento canino, podendo causar a raiva. Por outro lado, a figura do cão era uma alegoria para a investigação, a pesquisa e a contemplação, devido ao seu faro aguçado e à sua resistência física.

Na segunda miniatura, alguns homens trabalham na terra enquanto outros são executados. Sendo o astro de ciclo mais longo e lento, Saturno é o senhor das sentenças e a sentença do tempo é a corrupção, a morte e o retorno do corpo material à terra.

Sua lição é a necessidade da queda antes da ascensão, já que o martírio do corpo tinha um papel importante na tentativa de redimir os pecados. É preciso de disciplina e trabalho duro para enfrentar a secura saturnina.

Com o uso da perspectiva, a figura do Louco é colocada em primeiro plano, mas fora de foco, no canto inferior esquerdo, assistindo à execução que ocorre na praça da cidade. Ocupando todo o espaço ao fundo da imagem, distante do olhar do leitor, correm os loucos nos campos entre as cidades. 

 

É preciso lembrar, que a expulsão dessas pessoas do espaço urbano também era utilizada como rito de purificação espiritual, sendo possível que sua posição nos limites da imagem atenda à necessidade de exorcizar da cena a loucura saturnina.

Na parte inferior da primeira miniatura, é possível ler um poema sobre o grande maléfico:

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“Saturno, homem lento e rei, produz
Ladrões, mentirosos, assassinos
Vilões, ódio e sem alguma luz
Pastores, deficientes e míseros semelhantes”
(PREDIS, C. Descrição da Esfera Celeste e dos Planetas, 6v).

Nos versos da Descrição da Esfera Celeste e dos Planetas, a Lua abre as portas para os jogos e o divertimento, enquanto Saturno traz a disciplina, o trabalho na terra, a trapaça, o ódio, o castigo e a morte.


Tendo a terra como seu elemento, sua esfera de influência estava ligada a aspectos materiais da vida cotidiana. Saturno abriga a dualidade da terra capaz de nutrir a vida daqueles que trabalham com disciplina e da terra ceifadora das almas e devoradora dos cadáveres.


Segundo Walter Benjamin, a terra de Saturno também era o lugar onde as profecias se ocultavam como pedras preciosas. Contudo, os dons espirituais como a profecia, a prudência (com a memória como uma de suas partes), a contemplação e a loucura, também podem ser associados ao fato de que Saturno ocupa a posição mais elevada entre os planetas. 


A esfera de Saturno era o espaço que separava o que se considerava sagrado e eterno do que se considerava temporal e profano. A esfera de Saturno, enquanto casa da Morte, separa a matéria caída e a perfeição espiritual. É ele o senhor responsável por guardar os limites da vida e da transcendência. 


No espaço de sua esfera, o limite entre a contemplação e a loucura é traçado pelo castigo corporal, que atua como possibilidade de expiação do pecado e da culpa, ou seja, de purificação espiritual.


Os longos ciclos de Saturno demarcam as sentenças do tempo, da corrupção e da morte, mas também a antiga esperança de renovação e restauração da Era Dourada de seu governo. Em suma, é possível afirmar que nesse período Saturno é a terra e o tempo, a vida e a morte, a história e a utopia, a sabedoria e a loucura.

o triunfo da morte

Essa imagem é um trionfo presente no baralho de tarô Gaignières (c. 1475-1500). Na imagem, a Morte monta um cavalo e triunfa sobre uma pilha de corpos humanos. Essa iconografia não é estranha quando se tem em mente que a Morte era um dos quatro cavaleiros do fim dos tempos, profetizado no Apocalipse de São João. Em suas mãos, segura uma gadanha, como o senhor do tempo segura sua foice.

Nesse período, marcado por uma preocupação particular com a morte, ela foi um tema muito comum na arte. Essa preocupação foi uma resposta encontrada para dar sentido aos surtos de peste que assolavam o continente desde o século anterior e à cultura de culpabilização, construída sobre a doutrina do pecado original e da queda humana como origem da finitude da vida.

As imagens das danças dos mortos, que por vezes eram encenadas em cemitérios, celebravam o fato de que todos seriam levados pela morte, independente do grupo social ao qual pertencessem. Nesse período também surge a ars moriendi, um pequeno livro de instruções para os ritos fúnebres. Outro costume era ter um objeto como memento mori, que servia para lembrar o seu possuidor de que um dia ele morreria.

 

Segundo o historiador Philippe Ariès, essa iconografia em que a morte aparece como um cadáver humano parcialmente decomposto surge no século XV. A novidade iconográfica sinalizava o horror à morte física do corpo. Esse horror sucedeu a experiência com os surtos de peste do século XIV que dizimaram cerca de um terço da população europeia.

Sendo consequência do amor que as pessoas sentiam em relação aos prazeres da vida, esse horror à morte física não se restringia à decomposição do corpo, mas também se manifestava em relação às doenças e ao envelhecimento, pois havia uma forte consciência da corrupção enquanto uma lei da natureza.

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Triunfo da Morte

o homem zodiacal

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Homem Zodiacal dos Irmãos Limbourg. Livro de Horas do Duque de Berry. Ms. 65. Disponível em: <https://bit.ly/3sFr37S>.

A miniatura ao lado faz parte de um livro de horas chamado As Riquíssimas Horas do Duque de Berry cuja produção foi encomendada aos irmãos Herman, Paul e Jean de Limbourg.

O Livro de Horas do Duque de Berry é ricamente iluminado e composto por miniaturas, orações, passagens da história sagrada e da história profana e um calendário com as atividades sociais de cada mês, acompanhando o movimento do sol pelo zodíaco.

Na miniatura aqui presente, há uma auréola ovalada com figuras das constelações do zodíaco. No centro da imagem, circunscrito pelo zodíaco, é possível observar a iconografia do homem zodiacal: um corpo humano com as constelações distribuídas em um eixo vertical da cabeça aos pés.

Nesse período, o ser humano (microcosmo) é imaginado como uma pequena versão do universo (macrocosmo), em harmonia com ele. Considera-se que o corpo possui as mesmas proporções que o restante do universo, podendo ser influenciado pelo movimento dos astros.

Nos cantos da imagem, descreve-se o conjunto de relações entre os elementos naturais, as qualidades primitivas, os humores corporais, o sexo/gênero e os pontos cardeais.

De acordo com Aline Dias da Silveira, havia uma relação alegórica entre o corpo, a sociedade e a natureza na filosofia do período. Os filósofos enxergavam uma relação de semelhança ou proporção entre essas três coisas, como se elas obedecessem a uma única ordem divina, hierárquica, racional e perfeita.

Com o predomínio do pensamento analógico e alegórico, as cadeias de associações se espalhavam por todos os degraus da escada da natureza. Como exemplos de figuras que poderiam ser associadas, é possível citar as qualidades elementares, os elementos, as constelações, os planetas, as pedras, as plantas, os animais, os grupos sociais, as idades humanas, os anjos, as estações do ano e as eras históricas.

entre o Juízo Final e o Renascimento

A expressão horizonte de expectativas, desenvolvida pelo historiador Reinhart Koselleck, é usada para se referir ao conjunto de eventos que as pessoas de uma determinada época são capazes de imaginar como um futuro possível. No horizonte de expectativas do século XV, período estudado aqui, observavam-se imagens de morte e renascimento que eram usadas para dar sentido ao tempo.

Uma dessas imagens é o segundo mais poderoso entre os trionfi Visconti-Sforza: o Julgamento Final. Essa imagem figura a cena da ressurreição dos corpos dos eleitos para a Parúsia e o Juízo, eventos que são narrados pelo livro do Apocalipse de João, produzido no século I e.c.

Na imagem, três pessoas saem de um mesmo túmulo. Seu juiz segura o globo terrestre em suas mãos e declara a sentença com uma espada, assim como a figura do nobre presente na cena central da segunda miniatura de Saturno. 

De acordo com a historiadora da arte Tamara Quírico, os surtos epidêmicos e os estragos das guerras no norte da península itálica haviam sido sentidos no século anterior como sinais da chegada do fim dos tempos, e o tema motivou diversas produções artísticas.

Para entender o significado desse tema, é preciso recuar ao início da narrativa bíblica, quando o pecado original de Adão ocasionou sua expulsão do Paraíso Terrestre, a necessidade do trabalho na terra e a presença da morte entre a humanidade.

Posteriormente, Cristo teria se sacrificado para redimir o pecado original, possibilitando seu triunfo sobre a morte no dia da Páscoa. Por seu sacrifício pela redenção da humanidade e seu triunfo sobre a morte, Cristo é quem realiza o julgamento das almas que voltam à vida no fim dos tempos.

Mas no horizonte de expectativas do século XV, também era possível ver uma concepção de tempo cíclico que tinha raízes na Antiguidade e que era impulsionada pelo desejo de restabelecer uma era dourada e reavivar a cultura Antiga que era tida como morta. Esse desejo se expressou em um movimento artístico e filosófico que ficou conhecido em períodos posteriores como Renascimento.

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A imagem do Julgamento Final presente no baralho Visconti-Sforza, portanto, guarda semelhanças com a figura de Saturno presente na Descrição da Esfera Celeste e dos Planetas, remetendo à dimensão histórica e utópica. Na imagem, a expectativa escatológica cristã e a expectativa pagã de repetição cíclica se sobrepõem. Em ambas, a utopia remete a uma era em que não há luto, culpa ou necessidade de trabalho, predominando a fartura e a paz.

Homem Zodiacal
Juízo Final
Mapa
Bibliografia Especializada

bibliografia especializada

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As imagens ao lado são capas das primeiras referências que foram lidas para compreender as miniaturas presentes na Descrição da Esfera e dos Planetas.

As discussões de Aby Warburg, Frances Yates, Walter Benjamin e Umberto Eco foram o ponto de partida para entender a relação entre a imagem e o pensamento alegórico medieval, tendo uma importância fundamental. Além do trabalho desses pesquisadores, diversas outras referências foram importantes nesse trajeto. Recomendamos as seguintes leituras:

ANDRADE, T. N. Relações entre magia e astrologia na Idade Média. Temporalidades – Revista de História, Edição 25, v. 9, n. 3, pp. 333-347, setembro/dezembro de 2017.

ARIÈS, P. Western Attitudes Toward Death: from the Middle Ages to the Present. RANUM, P. M. (trad.). Londres: Marion Boyars, 1976. 107p.

BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. Volume 1. 3a ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. 253p.

BENJAMIN, W. Origem do drama trágico alemão. 2a ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. 335p.

BURKE, P. The Renaissance. Londres: Macmillan Press, 1997. 75p.

ECO, U. Arte e Beleza na Estética Medieval. 4a ed. Rio de Janeiro: Record, 2018. 351p.

FARLEY, Helen. A Cultural History of Tarot: From Entertainment to Esotericism. IB Tauris Publishers, 2009. 270p.

FOUCAULT, M. Stultifera Navis. In: FOUCAULT, M. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978. pp. 7-51.

HERRERA, B. The Children of the Planets: freedom, necessity, and the impact of the stars – the iconographic dimensions of a pan-european early modern discourse. 2012. Dissertação (Mestrado em Artes) – Central European University, Budapeste. 110p.

KOSELLECK, R. “História Magistra Vitae – Sobre a dissolução do topos na história moderna em movimento” e ““Espaço de experiência” e "horizonte de expectativa": duas categorias históricas” In: KOSELLECK, R. Futuro Passado. Contribuições à Semântica dos Tempos Históricos. Rio de Janeiro: Contraponto. Editora PUC-Rio, 2006. pp. 41-60, 305-327.

MACEDO, José Rivair. Riso ritual, cultos pagãos e moral cristã na Alta Idade Média. Boletim do CPA, Campinas, 1997, n. 4, pp. 87-110.

MOAKLEY, Gertrude. The tarot cards painted by Bonifacio Bembo for the Visconti-Sforza family: an iconographic and historical study. New York Public Library, 1966. 124p.

QUÍRICO, Tamara. Peste Negra e escatologia: os efeitos da expectativa da morte sobre a religiosidade do século XIV. Mirabilia, n. 14, pp. 135-155, 2012.

QUÍRICO, Tamara. A morte de Deus e a morte do homem: Paixão de Cristo, Juízo final e triunfo da morte no fim da idade média. Revista NAVA, Juíz de Fora, v. 1, n. 1, pp. 8-25, 2015.

SHAMOS, Geoffrey. Astrology as a Social Framework: The 'Children of Planets', 1400-1600. Journal for the Study of Religion, Nature & Culture, 2013, v. 7, n. 4, pp. 434-460.

SILVEIRA, Aline D. Relação corpo, natureza e organização sociopolítica no Medievo: revelação, ordem e lei. In: NODARI, E. S.; KLUG, J. (orgs.). História Ambiental e Migrações. São Leopoldo (RS): Oikos, pp. 151-166, 2012.

SILVEIRA, A. D. Temporalidade, Historicidade e Presença em uma Análise do Prólogo do Picatrix (séc. XIII). História da Historiografia, pp. 185-201, 2017.

SILVEIRA, A. D.; SAGREDO, R.; COSTA, D. L. A importância dos Mitos Orientais sobre a morte para a compreensão da Condição Humana. Revista Brasileira de História das Religiões, ANPUH, Ano XI, n. 33, pp. 71-97, 2019a.

SILVEIRA, A. D. Dos Papiros Gregos de Magia ao Picatrix: mobilidades e confluências do saber na longa duração. In: FRIGHETO, R.; SILVA. G. V. da; GUIMARÂES, M. L. (orgs.). As mobilidades e as suas formas na Antiguidade Tardia e na Idade Média. 1a ed. Vitória: GM, pp. 175-196, 2019b.

SILVEIRA, A. D. Política e Magia em Castela (Século XIII): um fenômeno transcultural. Topoi, Rio de Janeiro, v. 20, n. 42, pp. 604-626, 2019c.

TEIXEIRA, F. C. Aby Warburg e a pós-vida das Pathosformeln antigas. História da Historiografia, Ouro Preto (MG), v. 5, pp. 134-147, setembro de 2010.

VIDOTTE, A.; MENDOÇA JÚNIOR, F. P. S. Magia Natural e Magia Demoníaca: o entrecruzamento de religião e magia no pensamento renascentista. Revista Brasileira de História das Religiões, ANPUH, Ano IV, n. 11, Setembro 2011, pp. 3-16.

WARBURG, A. Histórias de Fantasma para Gente Grande. Escritos, esboços e conferências. WAIZBORT, L. (org.). BÁRBARA, L. B. (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

 

YATES, F. A Arte da Memória. Campinas: Editora UNICAMP, 2007. 498p.

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